terça-feira, 6 de julho de 2010

Artigo | Ficha Limpa e a presunção de inocência

Ficha Limpa e a presunção de inocência

Por Gueverson Farias*


A chamada Lei da Ficha Limpa representou a concretização de um anseio da sociedade e um importante passo na busca por maior honestidade na política brasileira. Apesar de fruto de uma grande mobilização popular, sofreu fortes resistências durante sua tramitação pelo Congresso Nacional, somente vencidas devido à forte pressão da opinião pública pela sua aprovação. Alterada por emendas parlamentares que limitaram significativamente seu alcance – dentre as quais se destaca a que passou a exigir condenação por órgão colegiado, e não por um único juiz, tal como previa o projeto original –, a lei foi finalmente aprovada.

O Tribunal Superior Eleitoral, instado a se manifestar sobre aspectos da nova lei, decidiu que, além de poder ser aplicada já nas próximas eleições de outubro, ela alcançaria também os políticos já condenados pela Justiça – o que havia sido colocado em dúvida em virtude de alteração de texto feita de última hora sob o pretexto de “uniformizar os tempos verbais” do projeto.

Pois bem, após essa verdadeira corrida de obstáculos, quando o caro leitor estivesse imaginando que político condenado não poderia disputar as próximas eleições, eis que surge um novo obstáculo, nem tão inesperado, já que anunciado por alguns “juristas” de plantão: a interpretação que o Supremo Tribunal Federal poderia dar ao princípio da presunção de inocência e seus reflexos sobre a constitucionalidade da nova lei.

Embora o vice-presidente da Corte, ministro Carlos Ayres de Britto, tenha negado pedidos semelhantes, dois outros ministros concederam liminares para possibilitar a candidatura de políticos que, à luz da novel legislação, não poderiam concorrer a cargos eletivos. Em um dos casos, a condenação originária ocorreu há mais de 10 anos, encontrando-se o processo desde 2000 aguardando julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, nas mãos especificamente do ministro que concedeu a liminar desde 2004 (RE 281.012). No outro, embora o fundamento principal da decisão tenha sido uma nulidade do processo no qual houve a condenação, chegou a referir-se que a lei exigiria “reflexão” quanto à sua constitucionalidade (AI 709.634).

Na linha de outras recentes decisões daquela Corte, sinaliza-se com uma interpretação do princípio da presunção da inocência que o toma como um absoluto, prevalecendo contra quaisquer outros princípios constitucionais, como o da moralidade pública. É necessário, porém, chamar a atenção para que, embora o princípio da presunção da inocência constitua uma das mais importantes garantias do cidadão no Estado de Direito, é possível interpretá-lo de uma forma que se compatibilize com os demais princípios constitucionais e com o interesse da sociedade como um todo – e não apenas do paradoxal candidato condenado, mas “presumivelmente” inocente.

Além de não encontrar paralelo no Direito de outros países, uma interpretação que tome o princípio da presunção da inocência como um absoluto viola vetores básicos de interpretação constitucional. E embora uma Corte Constitucional deva ser, em determinados casos antimajoritária – isto é, tenha de decidir contra o que entende a maioria da população – não precisa sê-lo sempre, sob pena de, com o passar do tempo, tornar questionável a legitimidade de suas próprias decisões.

*Juiz federal

Fonte: Zero Hora - http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2961318.xml&template=3898.dwt&edition=15033&section=1012
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