terça-feira, 25 de maio de 2010

Da Folha de São Paulo | Vitória moral

Editoriais . Opinião

São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2010

Aberta a dúvidas tanto práticas quanto teóricas, lei da "ficha limpa" mostra ainda assim o peso da mobilização popular


O MAIS IMPORTANTE aspecto da lei da "ficha limpa", aprovada pelo Senado Federal nesta quarta-feira, é que o diploma resultou de um amplo esforço de mobilização da sociedade.
Subscrito por cerca de 1,6 milhão de cidadãos, o projeto foi apresentado ao Legislativo pelo mecanismo constitucional da iniciativa popular, dispensando o patrocínio de qualquer partido, deputado ou senador.

Por mais de uma ocasião, previu-se que terminaria engavetado. Não parecia plausível, com efeito, que a maioria dos parlamentares manifestasse interesse num diploma visando a impedir a candidatura de quem tivesse condenações na Justiça, em função de crimes contra o patrimônio público ou de natureza eleitoral, por exemplo.

Mesmo eliminados os pontos mais draconianos do projeto, permanece a surpresa de sua aprovação. Explica-se, sobretudo, pelo interesse, pelo respaldo de opinião e pela publicidade -no bom sentido- que cercaram a iniciativa, tornando insustentável para os próprios políticos, ainda mais num ano eleitoral, que se inclinassem a dar ao processo algum outro desfecho.
A pressão da sociedade teve efeitos sobre o Legislativo. Não é pouco. Mas é provavelmente tudo. Na prática e na teoria, a lei da "ficha limpa" comporta uma série de dúvidas quanto à sua conveniência e aplicação.

Fica por resolver, no plano imediato, se seus dispositivos irão valer já para as próximas eleições. Minúcias técnicas e questões de regulamentação ainda estão por decidir.

Do ponto de vista jurídico, há largo espaço para discussões, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quanto à constitucionalidade da lei. De que modo se concilia o princípio da presunção da inocência, tantas vezes reiterado em decisões polêmicas do STF, com a ideia de que alguém deva ser privado de seus direitos políticos enquanto ainda não foi julgado em última instância?

Note-se que a esmagadora maioria, se não a totalidade, dos atuais deputados e senadores não se vê atingida pela nova lei. Surge até a figura do "ficha sujo oculto" -o parlamentar que, votando a favor do projeto, julga avalizar para si próprio uma disposição ética que nada, em sua vida pregressa, autorizou-o alguma vez a ostentar.

Eis, para lembrar o conhecido bordão, a homenagem que o vício presta à virtude. Vitória moral, sem dúvida, de quem se sente inconformado com o espetáculo do oportunismo, da fraude e da criminalidade pura e simples na vida política brasileira.

A lei da "ficha limpa" não os elimina -e nem tem poder sobre as decisões de inúmeros eleitores que, por desinformação ou indiferença, reiteradamente conduzem corruptos ao poder.
Na surpresa de sua aprovação, mostrou-se todavia o peso que pode assumir a mobilização de muitos, quando essa mesma tentação da indiferença deixa de contaminá-los também.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2105201001.htm

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