Cândido Grzybowski*
Nos últimos 30 anos, como povo, através da pressão das ruas e do voto, já temos memoráveis conquistas a celebrar. Fizemos o movimento cívico das “Diretas Já” no início dos 80. O voto direto para presidente só veio em 1989, mas acabamos com a ditadura em 1985. Fizemos grandes pressões e mobilizações, fundamentais para a promulgação de uma Constituição Cidadã, em 1988, apesar de não termos conseguido uma Constituinte exclusiva e termos que engolir um Congresso Constituinte, eleito no oba-oba do cruzado. As eleições criam surpresas para nós mesmos, sobre o que somos como cidadãs e cidadãos eleitores.
Elegemos Fernando Collor em 1989, caçador de marajás e corruptos, para descobrir logo depois a sua própria ligação com a corrupção. Mas soubemos fazer, com os “cara pintada” à frente, o movimento da “Ética na Política” e “Fora Collor”, levando à destituição do então presidente, em 1992. Mais precavidos, elegemos Fernando Henrique Cardoso em 1994. Apesar de seu passado de esquerda, Cardoso, embalado na popularidade do Plano Real, nos fez engolir a agenda neoliberal, transferindo patrimônio público a grandes grupos privados. Aí, em 2002, elegemos como presidente o Lula, trabalhador, migrante e moldado na luta sindical. Parecia o encontro da nação consigo mesma, mas descobrimos que é apenas um começo democrático, por isto mesmo contraditório, de construção do país dos sonhos.
Em tão pouco tempo, esta não deixa de ser uma fantástica história de democracia como processo baseado num “pacto de incertezas”. Criamos um novo país, sem dúvida, mas nas condições e de forma que ninguém pode dizer que domina. As mazelas – temos tantas acumuladas ao longo de uma história de séculos de dominação, autoritarismo e privilégios dos mais fortes, de exclusão social, racismo e machismo, de conquista e destruição do patrimônio natural, que é difícil até fazer o inventário – ainda estão aí, todas elas, hoje visíveis pela iluminação da democracia, mais ainda quase intocáveis. Enfim, vivemos a democracia, temos um país cada vez mais democrático, esta é uma verdade. Mas sentimos a tarefa da mudança aumentar ao invés de diminuir.
Pela Constituição, temos um Estado democrático de direito, com instituições e órgãos democráticos como consequência. Descobrimos, no entanto, que temos uma gigante tarefa de democratizar o Estado, suas instituições e órgãos. A legalidade e a institucionalidade constitucional são necessárias, mas insuficientes para garantir a sua verdadeira operação como espaços democráticos, a serviço do processo de democratização da sociedade como um todo. Eles precisam ser tomados e vivificados por princípios e valores republicanos e democráticos, carregados por representantes e funcionários imbuídos por tal cultura. Tarefa nada simples, como estamos descobrindo na própria medida em que avançamos a trancos e barrancos.
Vejamos de mais perto o Parlamento, que ocupa um lugar proeminente na democracia. Afinal, nas democracias, é no caldeirão do Parlamento que a sociedade pode se expressar legitimamente, com suas diferenças e contradições virando forças capazes de negociar, pactuar e decidir, conduzindo a transformações e mudanças. É aí onde os direitos emergentes legítimos viram lei e políticas, regulamentos e normas são definidos e votados. Mas o que acontece com o nosso Parlamento? Em busca da impunidade, ele está tomado por políticos “ficha suja”. Em vez de representação política das ideias e projetos que emergem na sociedade, o Parlamento é tomado pelos que buscam proteção aos seus próprios crimes. São pessoas de influência e poder em seu lugar de origem que buscam pelo voto um mandado parlamentar para virarem impunes.
Como é difícil democratizar a própria democracia! O fundamental do instituto de imunidade do representante eleito quando no exercício de seu mandato, criado para fortalecer a sua total liberdade de opiniões e posições, não pode ser apropriado por interesses privados, de forma a (tão somente) tornar impossível a condenação por crimes cometidos. Isto deturpa a política como bem comum e a própria democracia como ideal e modo de vida em sociedade.
O sentido da iniciativa popular pela “ficha limpa” nas eleições – mais de um milhão e trezentas mil assinaturas – visa impedir que pessoas de “ficha suja” possam disputar cargos políticos em busca de proteção. Acontece que tal iniciativa de lei deve passar pelo Congresso atual, formado por muitos “ficha suja”, candidatos à reeleição. Aí está o drama. Para valer, uma pressão legítima e profundamente democrática e democratizadora, como a da “ficha limpa” deve virar lei. Como virar lei com um Parlamento cheio de gente que tem ficha corrida maior do que currículo? O jeito é trazer a campanha para a rua novamente nesta conjuntura eleitoral.
Precisamos usar para o debate eleitoral e para o voto soberano da cidadania na escolha dos futuros representantes os recursos ao nosso alcance, que vem se mostrando bastante eficazes na pressão do Congresso. Precisamos por a nu os “ficha suja” e fazer campanha contra eles, ao mesmo tempo em que precisamos usar o poder do voto para eleger melhores representantes. Esta é uma tarefa nossa, de cidadania ativa.
* Sociólogo, diretor do Ibase.
Publicado na Agência Carta Maior, em 11/05/2010.
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