12/08/2009 - 06h53
Márlon Jacinto Reis*
As eleições de 2006 foram um marco para a luta pela afirmação da moralidade e da probidade para o exercício dos mandatos eletivos como elemento indispensável à democracia.
Vieram dali as mais relevantes decisões – tomadas principalmente no âmbito do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro – que levavam em conta princípios acolhidos pela Constituição para concluir pelo indeferimento de candidaturas sabidamente envolvidas com o uso deletério dos mandatos políticos.
Em 2008 o tema voltou à baila com força redobrada e por muito pouco não se assentou na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral o entendimento de que a Justiça eleitoral pode considerar elementos que marcam o passado dos candidatos como base para a inviabilização de sua pretensão de lançarem-se em uma candidatura.
Em todas essas oportunidades a Justiça eleitoral andou em sintonia com um crescente apelo público pelo afastamento daquelas personagens já reconhecidamente comprometidas com ilícitos que, por sua própria natureza e envergadura, certamente aconselham o afastamento da sua elegibilidade.
Todas essas iniciativas acabaram barradas no âmbito do próprio Poder Judiciário, ao entendimento de que a falta de lei específica impediria o conhecimento da matéria.
A Campanha Ficha Limpa é a ação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) que tem por objetivo justamente ver editada a lei complementar a que se refere o § 9º do art. 14 da Constituição, com a redação que lhe foi concedida pela Emenda n° 4/2004.
Antes dessa modificação, o texto constitucional apenas previa que as inelegibilidades deveriam servir de base para assegurar a legitimidade e normalidade dos pleitos. Em resposta aos graves fatos descobertos em 1993 (a denominada “Máfia do Orçamento”), o próprio Congresso Nacional aprovou a mudança na Constituição para autorizar o legislador complementar a fixar inelegibilidades para a “proteção da moralidade administrativa e da probidade para o exercício dos mandatos, considerada a vida pregressa dos candidatos”.
O atual texto da Lei Complementar n° 64 (Lei de Inelegibilidades) – editada em 1990 – é, por isso, incompatível com o que a Constituição só veio a autorizar quatro anos depois. As premissas e lindes constitucionais eram bem diversos e mais estreitos quando da edição da Lei de Inelegibilidades, ampliando-se posteriormente para abarcar um número mais significativo de hipóteses.
Infelizmente, passados quinze anos desde a emenda constitucional, o Congresso ainda não cumpriu o encargo que lhe foi cometido. Diversos projetos de lei chegaram a ser apresentados, mas todos eles tiveram por destino o fundo das gavetas da Câmara e do Senado, onde dormitam ao aguardo de alguma novidade que faça o Parlamento cumprir o seu papel.
É nesse contexto histórico-político que surge e se desenvolve a Campanha Ficha Limpa. Ela apresenta à sociedade brasileira um projeto de lei de iniciativa popular cujo objeto é justamente a regulamentação do citado dispositivo da Lei Fundamental, tendo como premissa a necessidade de fixação de padrões objetivos.
O projeto não assenta em nenhum momento a possibilidade de os magistrados eleitorais realizarem juízos de valor sobre a conduta dos candidatos. Não deixa abertura para que um juiz ou tribunal eleitoral decida sobre quem deve ser ou não candidato segundo a própria subjetividade dos julgadores.
Contrariamente, o projeto prevê situações objetivas que, acaso verificadas, retirarão temporariamente ao postulante a sua elegibilidade. São todos pré-requisitos que se aperfeiçoam fora do processo de registro da candidatura. Não é o juízo eleitoral quem valora fatos e circunstâncias para decidir se a candidatura deve ou não ser admitida. A circunstância impeditiva já deve ter-se operado em outra oportunidade e por instâncias e juízos distintos.
Se o foro criminal decide em qualquer instância que o acusado abusou sexualmente de crianças, desviou verbas destinadas à saúde ou liderou uma organização de narcotraficantes, ele leva em conta aspectos particulares do caso concreto, julgando segundo silogismos que se baseiam necessariamente na subjetividade do acusado, especialmente no que toca à sua culpabilidade e à intensidade do dolo. Muitas vezes a condenação criminal exige até mesmo considerações sobre “o especial fim de agir” do réu.
Nada disso ocorre no juízo eleitoral ao apreciar-se um pedido de registro. Busca-se apenas verificar a existência objetiva de fatores que a lei considera relevantes a ponto de vedar a candidatura de quem quer que neles incida.
Quando se impede a esposa do prefeito reeleito de candidatar-se ao mesmo cargo, não se discute se ela se aproveitaria ou não dessa condição para benefício da sua candidatura. Isso é presumido pela Constituição. Quando se veda a elegibilidade de quem teve suas contas públicas rejeitadas por vícios insanáveis, não se discute na Justiça eleitoral sobre os motivos do órgão responsável por essa reprovação. Procura-se não a punição do administrador ímprobo ao assentar-lhe essa inelegibilidade, mas a prevenção da sociedade contra candidatos que já possuem sinais de que desservirão ao interesse público.
Seguindo esse mesmo raciocínio, o projeto prevê que a Justiça eleitoral indeferirá o pedido de registro de quantos hajam sido condenados por narcotráfico, racismo, genocídio, desvio de verbas e outros delitos cuja gravidade é por todos desde logo percebida.
Não se trata de analisar se eles são ou não culpados dessa ou daquela conduta, mas de observar a presença de uma circunstância objetiva – a sentença criminal – a recomendar que não estejam entre os postulantes ao mandato eletivo.
Essa é uma das razões pelas quais o princípio da presunção de inocência não se aplica ao tema das inelegibilidades. Como não há aqui juízos de valor sobre a culpa do pretendente ao registro de candidatura, não há que se falar em presumir-se ou não a sua inocência. A decisão do foro eleitoral baseia-se objetivamente na existência da sentença criminal, não subjetivamente na possível culpa do réu.
Com relação aos submetidos a foro definido por prerrogativa de função, o projeto popular considera bastante o recebimento da denúncia por um órgão colegiado. É que aqui a decisão é mais segura, tomada por uma instância plural. Por outra parte muitas das vezes esses processos podem ter até mesmo a sua tramitação suspensa por decisão legislativa. Além disso, quem já detém foro privilegiado não pode pretender, no restante, ser tratado como igual a todos os demais.
Para a definição de uma inelegibilidade basta que a lei repute certa condição objetiva como suficientemente grave a ponto de fazer valer a necessidade da adoção de uma medida restritiva. Analisada em separado, toda inelegibilidade tem necessariamente esse condão. O grupo social pode definir através da lei complementar o perfil daqueles que poderão apresentar-se como candidatos.
De outra parte, é evidente a conveniência de uma lei que trate objetivamente dessas circunstâncias, evitando imprecisões e juízos discricionários que convertam os pleitos em uma aventura imprevisível.
Essa é uma das razões pelas quais o projeto de lei de iniciativa popular apresentado pelo MCCE através da Campanha Ficha Limpa vem ganhando cada vez mais adeptos, tendo alcançado nos últimos dias a impressionante soma de um milhão de apoiadores.
Mais detalhes sobre o projeto, inclusive o formulário para sua subscrição, podem ser encontrados no site http://www.mcce.org.br/.
*Márlon Jacinto Reis é juiz eleitoral e coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE).
Fonte: Site Congresso em Foco - http://congressoemfoco.ig.com.br/noticia.asp?cod_canal=4&cod_publicacao=29293
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