O projeto da "ficha limpa"
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13712
Encontra-se tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar n.º 518, de 2009, que inclui novas hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato eletivo. A imprensa denominou o projeto de "ficha limpa", buscando trazer a discussão para o campo moral. Não se pretende aqui negligenciar a perspectiva moral da proposição, mas a análise que se buscará fazer é sobre os aspectos jurídicos do projeto. Estamos absolutamente convencidos de que, sendo aprovada a proposição e convertida em Lei Complementar, em pouco tempo o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal serão chamados a se pronunciarem sobre a sua constitucionalidade. A questão que se coloca é a seguinte: pode a Lei Complementar estabelecer que a condenação criminal, sem o trânsito em julgado, torna o cidadão inelegível?
O Projeto de Lei Complementar n.º 518/09 estabelece que serão inelegíveis "os que forem condenados em primeira ou única instância ou tiverem contra si denúncia recebida por órgão judicial colegiado pela prática de crime descrito nos incisos XLII ou XLIII do art. 5º da Constituição Federal ou por crimes contra a economia popular, a fé pública, os costumes, a administração pública, o patrimônio público, o meio ambiente, a saúde pública, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e drogas afins, por crimes dolosos contra a vida, crimes de abuso de autoridade, por crimes eleitorais, por crimes de lavagem e ocultação de bens, direitos e valores, pela exploração sexual de crianças e adolescentes e utilização de mão-de-obra em condições análogas à de escravo, por crime que a lei comine pena não inferior a 10 (dez) anos, ou por houverem sido condenados em qualquer instância por ato de improbidade administrativa, desde a condenação ou recebimento da denúncia, conforme o caso, até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena".
Como se percebe, a proposição não exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a incidência imediata da nova hipótese de inelegibilidade, bastando a condenação em primeira ou única instância ou o recebimento da denúncia por um órgão judicial colegiado para que o cidadão não possa se candidatar a nenhum cargo eletivo. Ou seja, toda vez que alguém incidir em qualquer dos tipos penais previstos no projeto e for condenado em primeira instância, ou então for recebida a denúncia por órgão colegiado (para os detentores de foro por prerrogativa de função), ser-lhe-á negado o registro de candidatura. A grande discussão que deverá ser travada é sobre a constitucionalidade deste projeto. Afinal, tornar inelegível alguém que ainda não tem condenação criminal com trânsito em julgado fere o princípio da presunção de inocência, insculpido no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal? O inciso LVII do art. 5º determina que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O que este dispositivo constitucional quer dizer é que ninguém poderá ser considerado culpado enquanto houver algum recurso processual cabível a ser julgado pelo Poder Judiciário. E a proposição em comento impede a candidatura do cidadão desde a condenação em primeira ou única instância, independente da possibilidade de reversão daquela condenação nas instâncias superiores.
Argumenta-se com base no princípio da presunção de inocência que o Projeto de Lei Complementar n.º 518/09 seria inconstitucional, ante a incidência de uma causa de inelegibilidade que pressupõe a condenação criminal sem que tenha havido o trânsito julgado. Haveria ainda um espaço para perseguições políticas e retiraria do eleitor o direito de escolher livremente seus candidatos. Discordamos deste posicionamento e estamos convencidos que o Projeto de Lei Complementar n.º 518/09 não só está em perfeita harmonia com a Constituição de 1988, como também vem para aperfeiçoar a regulamentação do § 9º do art. 14 da Lei Maior, que determina o seguinte:
"§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta." (grifamos).
Inicialmente, é necessário delimitar as diferenças, que são bem nítidas, entre as inelegibilidades e a privação dos direitos políticos. As inelegibilidades são situações fático/jurídicas que apenas impedem a obtenção do registro de candidatura. Havendo alguma inelegibilidade, falece àquela pessoa o denominado ius honorum, ou seja, o direito de ser votado. A inelegibilidade só retira do cidadão o direito de ser candidato a um cargo público eletivo. Mas não lhe retira a própria cidadania, pois o significado constitucional de cidadania está relacionado ao pleno exercício dos direitos políticos. Quando há privação (perda ou suspensão) dos direitos políticos, na forma prevista no art. 15 da Constituição Federal, as consequências jurídicas são bem mais amplas. Embora neste caso também exista um impedimento para a obtenção de registro de candidatura a qualquer cargo eletivo – pois o pleno exercício dos direitos políticos é uma das condições de elegibilidade – a perda ou suspensão dos direitos políticos tem implicações na vida da pessoa que vão bem além da impossibilidade de se candidatar.
Isto porque a perda ou suspensão dos direitos políticos não apenas impede a pessoa de ser votada, como também a impede de votar em alguém. Saliente-se que nos casos de inelegibilidade, embora não podendo ser candidato a cargos eletivos, o sujeito permanece detendo o ius singulii, que é o direito de votar. Nas hipóteses de perda ou de suspensão dos direitos políticos, a pessoa perde até mesmo o direito de escolher seus representantes. E não é só. Quem perde ou tem suspensos os seus direitos políticos também não pode propor ação popular e tampouco desempenhar qualquer função ou cargo público. Nada disso acontece com aquele que é inelegível. A inelegibilidade apenas impede o cidadão de ser candidato a um cargo eletivo, mas ele permanece com os demais direitos inerentes à cidadania totalmente íntegros. O eleitoralista Adriano Soares da Costa delimita bem essa questão, in verbis:
"O alistamento eleitoral é o fato jurídico do qual dimana o direito de votar (ius singulii). Quando o ordenamento jurídico utiliza o signo direitos políticos, fá-lo como sinônimo de soberania popular ou cidadania. A soberania popular é o gênero, do qual são espécies o direito de sufrágio e a elegibilidade. Mas não só. A perda de direitos políticos é perda de acesso a cargos e funções públicas; perda da legitimidade ativa para o exercício de determinadas ações cívicas (ação popular, v.g.); perda do direito de votar e do direito de participar da administração da coisa pública, de maneira direta, pelo referendo e plebiscito. Quem perde ou tem suspenso os direitos políticos, perde ou tem suspensa a própria cidadania, o próprio status civitatis." (Instituições de Direito Eleitoral – 6ª ed. rev. Ampl. e atual. – Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pág. 103)
Portanto, as inelegibilidades, de um lado, e a privação dos direitos políticos, de outro, são institutos com naturezas jurídicas muito distintas. O cidadão que não é elegível apenas não pode ser candidato, ao passo que quando se está diante da perda ou da suspensão dos direitos políticos, há uma supressão – definitiva ou temporária – de todos os direitos inerentes à cidadania.
Pois bem, a Constituição Federal estabelece no inciso III do art. 15 que os direitos políticos ficam suspensos nos casos de condenação criminal com sentença transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos. O Projeto de Lei Complementar n.º 518/09 não trata de hipótese de suspensão dos direitos políticos. Trata apenas de uma nova hipótese de inelegibilidade, que, como já dito, não impede a pessoa de exercer os demais direitos da cidadania. Apenas a impede de se candidatar a um cargo eletivo. Não fere, portanto, o princípio da presunção de inocência, porque quando se está diante de uma sentença judicial transitada em julgado, como um efeito intrínseco ao trânsito em julgado, incide a suspensão dos direitos políticos. Neste contexto, não haveria nenhum sentido prático em um Projeto de Lei Complementar que exigisse o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a cominação de uma sanção de inelegibilidade, pois o trânsito em julgado neste caso acarreta a suspensão dos direitos políticos, na forma do art. 15, inciso III da Constituição. Seria uma proposição extremamente demagógica, pois a inelegibilidade não teria nenhum efeito prático, ante a incidência automática da suspensão dos direitos políticos, de consequências muito mais amplas. O que o Projeto de Lei Complementar n.º 518/09 pretende é apenas criar uma nova causa de inelegibilidade, aperfeiçoando a regulamentação do § 9º do art. 14 da Constituição.
Ou seja, a própria Constituição Federal determina claramente que a moralidade para exercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato, são critérios balizadores para a edição de Lei Complementar que estabeleça os casos de inelegibilidade. E é importante registrar ainda que o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou diversas vezes no sentido de que o § 9º do art. 14 da Constituição carece de regulamentação infraconstitucional, tendo sido editada a Súmula n.º 13 com a seguinte redação: "Não é auto-aplicável o § 9º, Art. 14, da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional de Revisão n.º 4-94".
A condenação criminal sem o trânsito em julgado não foi inserida na redação original da Lei Complementar n.º 64, de 1990, talvez porque o legislador infraconstitucional, naquela oportunidade, tenha ficado impressionado com as equivocadas teses de inconstitucionalidade da medida. É exatamente este o propósito do Projeto de Lei Complementar n.º 518/09, que atende àqueles critérios balizadores – moralidade e vida pregressa – previstos no § 9º do art. 14. Ademais, não há como vislumbrar inconstitucionalidade em uma proposição que busca apenas garantir a prevalência do princípio da moralidade no trato da coisa pública e aperfeiçoar a regulamentação de um dispositivo constitucional.
Escrito por:
Carlos Fernando Agustini Coruja
Deputado Federal (PPS/SC). É bacharel em Direito e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Humberto Guimarães Souto
Deputado Federal (PPS/MG). É advogado e Ministro aposentado do Tribunal de Contas da União.
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